Patinho Branco

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Historia de índio

Jacaré era o apelido, mas nem ele mesmo se lembrava do seu nome, de meia idade e muita saúde, sua vida era vaguear pelo mar.
Quando estava em terra, arrumava suas redes com paciência, fiando e fiando aquela linha de náilon, dura, que deixava suas mãos tão judiadas pelo tempo, cada vez mais calejadas.
Ele sempre tinha em casa um peixinho para vender, já que nem tudo que pescava vendia para a peixaria, que era também uma venda, onde os pescadores vendiam seus peixes e compravam mantimentos para a semana, marcado na velha caderneta.
Boa parte das contas, era paga com os peixes que esses pescadores traziam, todo fim de tarde, e pagava-se sempre com os melhores exemplares, a preços aviltados, é evidente. Não havia pescador da região que não estivesse devendo na vendinha, também conhecida como a venda do japonês.
O estabelecimento, era uma edificação simples localizada no areião da praia. Não havia outro lugar próximo que se pudesse vender e comprar, de forma que a vendinha fazia parte da paisagem local, servindo de farmácia, banco, correio, mercado e etc.
O dinheiro que o Jacaré ganhava vendendo peixe em casa, ajudava a manter as contas em dia, já que os melhores exemplares ela não levava para a vendinha, mas guardava em casa em um freezer velho, todo enferrujado por fora, mas limpinho por dentro, como ele fazia questão de dizer.
Na época de defeso, pouco se podia fazer, a não ser tomar pinga na vendinha e contar historias de pescador, que nem sempre eram de pescador, e nem sempre eram mentiras.
Nesse dia, nosso amigo Jacaré, resolveu contar uma historia da sua infância, do tempo em que vivia junto com os índios da região. Sua mãe era índia e seu pai um pescador que viera do sul, jogado na praia, depois que seu barco afundou em uma tempestade.
Não conheceu seu pai, que morreu tempos depois de seu nascimento, sendo criado pelo seu tio Apoanã que era cacique, muito respeitado na região, entre os índios e conhecido pela sua valentia. Rezava a lenda que Apoanã pegava onça à faca, se era lenda ninguém sabe ao certo, mas no seu corpo não faltavam cicatrizes.
Era comum, contava o Jacaré, andar pela mata por dias, procurando caça, já que não havia muita, mas ainda era possível encontrar em certos lugares alguns animais como paca, raposinha e com sorte até macaco. Tinham que competir com caçadores da cidade, bem armados, ou funcionários da Estrada de Ferro Sorocabana cujas linhas, passavam ali pela orla, forçando os índios a avançar cada vez mais fundo na mata, se deparando por vezes com surpresas desagradáveis, como dar de cara com um animal predador de grande porte, como uma onça pintada, ou mesmo uma susuarana.
Certa vez, em uma dessas caçadas que levam dois a três dias de caminhada na mata, Jacaré e seu tio Apoanã, estavam seguindo o rastro de uma Paca, a beira de um córrego, provavelmente onde o animal ia beber água. Estavam de tocaia, espreitando na mata a procura da Panca, que já haviam avistado, mas como ela estava em movimento, ela sumia por entre os galhos e arbustos, quando perceberam o vulto de uma figura que caminhava ao lado deles, sem fazer ruído algum, que parecia andar flutuando.
Em um rápido olhar só perceberam um vulto escuro, não puderam ver claramente, era como uma sombra que se movia silenciosamente entre os galhos. Jacaré e seu tio ficaram gelados de susto e medo com aquela visão repentina. Uma onça viera por detrás deles, de olho também na Paca, quando todos se entreolharam no mesmo instante se dando conta uns da presença dos outros.
A sombra passou por eles sem dar a menor atenção, indo em direção à Paca que desesperada com o iminente ataque, desapareceu na mata em desabalada carreira, deixando a pantera e os nossos amigos para trás e frente a frente com a onça. O que ninguém esperava é que mais um personagem estava a espreitar.
Não demorou em a onça perceber o vulto próximo indo na sua direção, e o encarou e rosnou ameaçando atacar. O vulto não mostrou o menor medo ou surpresa e simplesmente olhou fixamente para a fera, que caiu dura, não deu tempo nem de piscar os olhos. Nossos heróis estavam perplexos e imóveis, não encararam aquela sombra, que ficou ali, observando por alguns segundos antes de desaparecer na floresta .
Jacaré e seu tio resolveram sair de cena calmamente como se nada tivesse acontecido, já que não haviam sido atacados pelo vulto, que a essa altura já deveria estar longe. Caminharam pela mata, seguindo trilhas feitas naturalmente pelos animais, fáceis de serem seguidas e reconhecidas pelos índios, que rapidamente desapareceram por entra as arvores. Caminhavam em silencio absoluto e a passos rápidos. As pernas pareciam querer correr por conta própria, como se não dependessem de um comando, tal o pavor que ficaram com os acontecimentos, mas tentavam conter o medo, pois correr, seria denunciaria onde estavam.
Pararam debaixo de uma arvore enorme, haviam andado pela mata por horas e estavam esgotados. Ficaram ali uns bom tempo e depois de avaliarem os últimos acontecimentos, resolveram continuar caçando, pois estavam certos de que o vulto havia ficado para trás.
Estavam apanhando paus e cipós para fazer uma armadilha, já que tinham visto pegadas de animais que andavam por ali.
Amarravam os paus, um a um, com agilidade de modo que rapidamente a armadilha ia tomando a forma de uma caixa engradada com paus amarrados com cipós, com uma porta em um dos lados . Enquanto Jacaré saiu para apanhar mais cipó, Apoanã, sentado no tronco de uma arvore caída, ajeitava os paus no chão quando percebeu uma sombra que ficara ao seu lado, sem fazer o menor ruído. Apuanã gelou novamente, lembrou da onça fulminada pelo olhar da sombra sem rosto e não levantou a cabeça, continuou arrumando os paus enquanto era observado.
Seu companheiro, que de longe assistia a tudo, tratou logo de se esconder por entre os arbustos, mas fez barulho , chamando a atenção para si, e a sombra desapareceu pela mata, silenciosamente.
Ficou claro que estavam sendo seguidos, e tudo fizeram para não deixar pistas na floresta, se comunicavam por gestos, não deixavam marcas ou rastros que pudessem ser seguidos. Estavam muito assustados e longe de casa, de modo que resolveram voltar o mais rápido possível. Precisavam se livrar daquele vulto e assim combinaram fazer a volta por um outro caminho alternativo, que apesar de mais longo, seria mais seguro, mesmo correndo o risco de encontrar com outros guaranis, a quem eram hostis e vice- versa, mas diante da situação que estavam vivendo, parecia ser a melhor opção.
Apesar de muitas áreas devastadas, ainda havia trechos da mata conservados, mostrando a exuberância da floresta. Arvores enormes, orquídeas maravilhosas, pés de palmito, Manacás floridos, riachos onde se via os peixes em cardumes, pássaros como os Sanhaços, Tiés sangue, Sete Cores, Sabiás e Saíras de todas as cores, por todo lado se percebia a presença de animais, pegadas no chão denunciadas pelo solo sempre úmido da mata fechada,que os nativos conhecem tão bem. Escolheram um lugar para fazer a maloca e passar a noite, que já vinha chegando.
Quando a noite chega, os índios, que conhecem os segredos das florestas como a palma da mão, se recolhem e não se atrevem sequer a olhar para a escuridão. A noite na mata é coisa de dar medo, os ruídos são amplificados, qualquer animal por menor que seja, até um inseto, parece ser um mostro pré-histórico pronto para o ataque. Mas o que dá medo mesmo nos índios, são os espíritos de seus ancestrais que vagueiam por entre as arvores, medo da mãe do ouro e do curupira, do saci e do boitatá.
À noite apesar de mal dormida, passou sem sobressaltos, Apuanã arrumava as tralhas para seguir viagem, enquanto o nosso Jacaré, com pouca tralha já estava pronto para por o pé na trilha, sempre vigiando o caminho pela frente, pois estavam em território alheio.
Apoanã ia à frente, com cuidado pois já havia sinais da presença de outros índios por aquela trilha, e vez por outra a mata de abria em clarões, alargando a trilha, facilitando a visualização, o que poderia denunciar a presença dos intrusos.
Foi em uma dessas clareiras que Apuanã, viu dois índios, previamente denunciados pela confusão que faziam, brigando e discutindo, não se sabe o motivo, mas brigavam de facões em punho.
Rapidamente se esconderam por entre o mato e ficaram observando a luta, que já durava alguns minutos, quando uma cabeça foi praticamente decepada, por um golpe certeiro. Alguém mais, um vulto já conhecido, também observava a luta, e resolveu se aproximar no momento da queda do índio, enquanto o outro se retirava sem olhar para trás. A sombra se aproximou do corpo caído, olhou ao redor, se curvou e de um só golpe, colocou a cabeça do infeliz no lugar, Segurava o pescoço do pobre índio como se estivesse costurando de volta no lugar. Olhou ao redor novamente e saiu na direção do outro índio que se embrenhara pela mata.
Apuanã se aproximou do índio caído no chão e viu o pescoço como que colado,de volta ao seu lugar, que já não sangrava e começava a apresentar sinais de cicatrização. Seu rosto estava desfigurado pelos golpes de borduna, quando de repente abriu um dos olhos, o que restava, pois o outro estava completamente roxo e inchado.
A dupla saiu em disparada pela mata sem olhar para trás, nunca viram coisas tão medonhas, em tão pouco tempo: deram de cara com uma onça; foram seguidos por um espírito; viram um índio ser degolado e ressuscitado , e agora estavam sendo perseguidos pelo zumbi degolado. Só pararam de correr no cair da noite, quando chegaram de volta a tribo. Exaustos, dormiram um sono pesado e sonharam sabe-se lá com o que.
Foi pela manhã que encontraram com o resto da tribo e contaram a aventura de terror que viveram nos últimos dias, só que para uma audiência de mulheres e crianças, já que os homens estavam no lago, a uma hora de caminhada pela mata. O lago era na verdade o encontro de dois rios que formavam uma grande bacia, que alguns quilômetros adiante se encontrava com o mar, servindo como caminho de acesso à tribo.
Esse caminho era normalmente usado para visitas de equipes medicas e de vacinação ou alguma outra autoridade, que partindo da cidade por barco era possível se chegar próximo da tribo de maneira mais rápida e confortável.
Ocorreu que enquanto Jacaré e seu tio foram caçar, uma equipe de cientistas franceses, com cerca de nove pessoas, estiveram visitando a tribo e desapareceram, no mesmo dia, sem deixar vestígios, tendo desaparecido inclusive o barco que estavam utilizando.
Naquele exato momento , os índios estavam sendo interrogados pelas autoridades, para esclarecimento do caso, que convenientemente estava escondido da grande imprensa. Havia a suspeita de canibalismo, como era de costume desse povo, em épocas remotas. Os índios por sua vez alegavam ás autoridades que não sabiam do paradeiro dos franceses e nem do barco, pois eles não estiveram na tribo em momento algum.
Os índios, alertaram as autoridades, para o fato de que havia naquele lago uma maldição, que em certas noites, uma luz muito forte emergia do fundo da lagoa, desaparecendo com quem olhasse para ela.
As autoridades, claro, não acreditaram nas crendices indígenas e continuaram as instigações por todo o dia, sem chegar a uma conclusão. Foram embora à noite para retornar no dia seguinte, mas nunca mais voltaram ou deram noticia. Talvez precisassem consultar instancias superiores, já que o caso envolvia estrangeiro, mas sabe-se que oficialmente, a teoria de canibalismo foi a que prevaleceu e por ai morreu o assunto, sem que chegasse a mídia.
Depois que as autoridades foram embora, na aldeia, por entre os índios, passeava um vulto sem rosto, que não era encarado, conforme instrução do Cacique Apoanã .
Foram muitos os dias em que o visitante esteve entre eles, e já nem se incomodavam com a sua presença. Ele nada perguntava, apenas observava aqui, depois ali, e passava o dia acompanhando as pessoas, como se não existisse ou fosse invisível.
Em um fim de tarde, ainda não era noite, uma explosão foi ouvida, vinda do lago, e todos foram ver. A luz que tudo sugava, saiu das profundezas e subiu ao céu, como uma bola de fogo.
Quando voltaram à tribo, perceberam que a sombra sem rosto também tinha desaparecido e deixado algo para trás.
No meio das ocas onde se realizam os cerimoniais, sobre um tronco, brilhava uma pedra que flutuava no ar emitindo raios azuis, vermelhos e amarelos.
Pouca gente conhece essa historia, cuja pedra ainda esta guardada com os índios da região, que em certas noites, dançam à luz da pedra, flutuando sempre que entram em transe.
Essa foi a historia do nosso amigo Jacaré, que a essas alturas já tinha bebido todas, e não tinha mais condições de contar mais nada.
Ninguém que esteja sóbrio pode acreditar nessa historia, mas é fato que há muitos anos se ouvi falar desses franceses que desapareceram na mata atlântica e de coisas estranhas aconteceram naquela região, como pescadores que saiam ao o mar para verificar suas redes, e seus barcos mudavam de percurso sem motivo aparente; motor de barcos que desligavam e mais à frente ligavam sozinhos; peixes estranhos e nunca vistos estavam sendo abatidos a tiro.


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Itanhaém, SP, Brazil
Formado em Administração, pescador de pesqueiro, palmeirense de quatro costados. Adoro os anos 70: tenho uma Caloi 10( são três na verdade), um fuca bala além de uma maquina fotografica Pentax Assay 35mm, só para curtir essa década maravilhosa. Cultivo uma pequena horta de temperos no quintal. Temos Manjericão do comum e do roxo, Alecrim, Hortelã, Salsinha, Cebolinha, orégano, Pimenta dedo de moça, malagueta e de cheiro. Gosto de estar com a familia, churrasquear e cozinhar, pedalar e bater papo com os amigos. Caminhar na praia é atividade obrigatória de todos os dias, quando o tempo ajuda.