Patinho Branco

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O Trem da Morte



Saiu da estação da Luz em São Paulo às 9 horas pontualmente. Se me lembro era um trem razoavelmente confortável e muito imponente, espaçoso de dar gosto.

Tomei meu lugar, ao meu lado o meu amigo Waldir, companheiro de todas as horas nessa viagem.

Trabalhávamos na mesma empresa e quando descobrimos que poderíamos tirar férias na mesma data, arranjamos logo algo para fazer: viajar pela América do Sul de trem, o que seria uma bela aventura, alem de custar relativamente pouco, como convinha. Era o pé na estrada, no caso, pé na estrada de ferro.

Isso era mesmo coisa de jovem, passeio da moda, pois no trem encontramos outros grupos que já vinham viajando desde o nordeste, todos estudantes também, acompanhados das namoradas, do violão, papagaio e muita cantoria.

Estávamos ansiosos, esperando a partida do trem, que ainda faltavam alguns minutos e dávamos assas a imaginação especulando como seria a viagem, até onde seria possível chegar sem visto. Era meio que lenda, a historia de um acordo entre os paises da América do Sul que permitia viajar, por esses paises, só com a carteira de identidade. A política nessa região sempre foi bastante conturbada e era um golpe político atrás do outro, que dependendo do governo da época, da guerrilha e do trafico de drogas, podia-se ou não viajar só com a carteira de identidade. Mas isso nós acabaríamos descobrindo na hora de entrar na Bolívia, cuja fronteira era relativamente vigiada, nem tanto devido ao trafico de drogas e mais pelo movimento da guerrilha, já que no Brasil estávamos em plena ditadura militar e os nossos generais queriam ver esse negocio de guerrilha bem longe, afinal dava muito trabalho.

As poltronas eram numeradas, de forma que foi fácil se acomodar já que de bagagem levávamos apenas uma mochila cada um. Os passageiros todos nos seus lugares, uma ou outra criança agitando, mas nada que incomodasse, a viagem seria mesmo uma maravilha. Mal sabíamos o que nos esperava.

De fato a viagem era muito confortável , bem diferente das viagens urbanas nos trens da Santos Jundiaí, que fazíamos às vezes entre as cidades da Grande São Paulo, trens lotados, bêbados vendedor de amendoim, pastor pregando, e os batedores de carteira que nunca eram presos.

Viajamos por horas, talvez sete ou oito, até chegarmos a cidade de Bauru, onde tivemos a primeira surpresa da viagem. Uma baldeação, aquilo que nos aeroportos chamamos de conexão, que deveria ser uma coisa tranqüila e sem maiores correrias.

Quando o trem parou na estação de Bauru, todo mundo saiu correndo do trem, como se alguem gritasse bomba, bomba, e rapidamente ocupavam a outra composição de trens, que estava em frente na outra borda da plataforma.

Eu e o meu companheiro, o Waldir, calmamente apanhamos nossas mochilas e nos dirigimos para a outra composição à procura dos nossos lugares, quando descobrimos que a numeração das poltronas já era, não valia mais, quem sentou, sentou, quem não sentou não senta mais.

Nessa fase da viagem o trem já estava mais vazio, mas nem tanto, e nos acomodamos onde foi possível, já que fomos os últimos a chegar, achando que nossos lugares estavam garantidos.

Andamos por todos os vagões, procurando um lugar que nos agradasse e notamos que somente os primeiros lugares, do lado esquerdo, a contar do inicio do vagão, estavam invariavelmente desocupados.

Marinheiros de primeira viagem que éramos, mas desconfiados de tudo, e sem alternativas, ficamos em um desses lugares logo nos primeiros bancos, que alias davam mais espaço para as pernas.

O trem partiu. No primeiro tranco da partida, a porta da cabine que ficava bem a nossa frente se abriu, e descobrimos porque ninguém queria ficar naqueles lugares, e lembrei do velho ditado; laranja madura na beira da estrada, ta bichada Zé, ou tem marimbondo no pé.

A tal cabine era tão somente o banheiro, que pelo cheiro, não era limpo há semanas, motivo também da correria na baldeação: todo mundo sabia do cheiro; menos nós.

As fechaduras dos banheiros de todos os vagões estavam quebradas, de forma que as portas ficavam abrindo e fechando, conforme o movimento do trem. Não tinha como isolar aquele cheiro fechando a porta, e ainda não tinha como evitar o “beng- beng” do bater da porta, com o balanço do trem.

Alem do cheiro e das pancadas da porta, a viagem correu sem novidades, a não ser o fato de que, a cada parada nas Estações, mais gente entrava e entupia o trem. Era de madrugada, e tinha gente de pé nos corredores de tão lotada que ficou a composição.

No fim de cada vagão tinha uma espécie de varanda, local muito usado pelos fumantes pois era proibido fumar no trem, e toda hora passava um funcionário de uniforme azul para fiscalizar, ou os fumantes, ou as passagens, ou anotar algum pedido para o restaurante, ou ainda entregar o marmitex, já que o carro restaurante, não se sabe porque, não funcionava. Com o trem lotado, o povo comia em pé mesmo. Era um prato de arroz com feijão, farofa e frango, que quando caia no chão, sujava tudo de gordura e complicava ainda mais a limpeza daquele velho trem, desconfortável e sujo.

Era dezembro e o calor estava insuportável. Durante o dia a paisagem distraia, mas durante a noite com o trem cheio, a distração era olhar para a cara dos outros ou fingir que estava dormindo, já que dormir mesmo não dava.

Eram pessoas muito sofridas, tristes e com um comportamento às vezes estranho ou diferente do esperado, eram pessoas que não vemos no dia a dia, não por elas não existirem, mas por estarem escondidas na multidão. Nessas ocasiões é que percebemos a diversidade do povo brasileiro, povo moreno em sua maioria, com poucos brancos ou negros. Essa imagem da nossa gente, só se conhece viajando pelo interior do Brasil, um povo moreno como os Hindus, que não aparece na televisão, e portanto é como se não existisse, mas esse é o verdadeiro povo brasileiro. Só quem viajou pelo interior do Brasil, pode dizer que conhece seu povo, quem não viajou nem imagina. Quem não é moreno, seja da etnia que for, um dia será, claro que falamos da descendência. Um dia, seremos todos mestiços, da cor dos hindus.

Era noite, um calor infernal, e a maioria das janelas ficavam fechadas, ou por vontade do passageiro que não queria tomar vento, ou por defeito mesmo, por falta de manutenção, já que as estradas de ferro estavam se acabando, conforme a política vigente até os dias de hoje, para facilitar a vida da industria automobilística.

Mas, retornando a viagem, o calor é infernal naquela região e o que salvava era o vento do trem em movimento, mas quando o trem parava nas estações o vento sumia. Era mais gente que entrava e ninguém saia, parecia horário de pico em São Paulo, só que no meio do mato. O leitor pode estar achando que eu exagero na narrativa, mas é isso mesmo. No meio de mato a caminho de Campo Grande , duas horas da manhã, o trem lotado e um escuro de dar dó, parado no meio do nada, esperando o outro trem que vinha em sentido contrario, já que o trilho, só tem para uma via. Nós suávamos de bica.

Eu não agüentava mais aquele calor, alem do mais precisava mexer as pernas, pois já havia horas que eu estava sentado naquela poltrona desconfortável. Fui ate o fundo do trem, na tal da varanda, tomar um ar, apesar de correr o risco de perder o lugar, que o Waldir guardava. Nessas horas era preciso virar um Dobermann para convencer aos mais insistentes, que o lugar estava ocupado.

O trem continuava parado na mais completa escuridão a não ser por uma ou outra pequena luz, talvez de emergência que ficava acesa, mas não iluminava nada, apenas sinalizava sua posição. Fiquei ali na varanda fumando e me refrescando com o ar fresco, ouvindo o barulho da bicharada no mato e apreciando o céu estrelado, que pela escuridão da mata ficava mais estrelado ainda.

Havia no céu uma estrela maior que as outras, e que parecia se mexer de tão brilhante que era. Julguei ser Vênus, muitas vezes confundida com óvni, de tão grande que ela aparece no céu. Planeta ou estrela era só um detalhe diante de tanta beleza, dei a ultima tragada naquele cigarro , pensando nos bichos barulhentos da noite, quando as luzes luz se acenderam. Sinal que o trem ia partir, quando olhei novamente para o céu, Vênus havia desaparecido. Entrei rapidinho.

Meu lugar ainda estava lá, mas o povo já andava de olho, o Waldir respirou aliviado quando cheguei, e daí ele foi também tomar um ar. Não falei nada de que Vênus havia desaparecido; afinal ele iria dizer que foi o cigarro, e não foi. O cigarro era cigarro mesmo!

Foi pela manhã, lá pelas oito horas que chegamos a estação de Campo Grande, que como as demais estações, era velha e mal cuidada, só que essa era um pouquinho mais feia. Fizemos nova baldeação.

Como já não éramos mais marinheiros de primeira viagem, ficamos espertos e fizemos a baldeação na velocidade de uma bala. Nem era preciso, pois o trem estava praticamente vazio, com meia dúzia de gatos pingados.

Os banheiros cheiravam igual ou pior que a composição anterior, e esse trem era na verdade bem pior. Os bancos eram bancos de fato, de madeira ripada, daqueles que o encosto vira de frete para trás e de trás para frente, composição bem antiga do tempo dantão.

Logo depois da saída de Campo Grande, vimos um Tamanduá Bandeira enorme, correndo solitário pelo campo. Foi uma visão inesperada, e inesquecível dada à beleza do animal vivendo em liberdade.

Já estávamos chegando a uma das regiões mais bela do planeta, o Pantanal, e a viagem começava a valer.

O trem quase vazio, ia parando pelas pequenas estações de forma que podíamos com tranqüilidade apreciar o povo local, povo de fronteira, um pouco rude e com costumes estranhos para nos. Lembro de uma dessas paradas, que da janela vi uma cena que por muitos anos ficou na minha lembrança. Foi quando um homem de aspecto rude, e que estava na plataforma para tomar o trem , se despedia do amigo , dizendo que ia até a cidade mais próxima, buscar remédio para sua mulher que estava doente, e puxando um punhal da cintura, entregou ao amigo pedindo a este que cuidasse da sua família ate sua volta. O amigo pegou a arma, e com certo ar solene disse: vá tranqüilo que eu não dormirei enquanto você não voltar.

Essa imagem ficou por muito tempo na minha lembrança, marcada pela rudeza desse povo das fronteiras, talvez lembranças de um passado belicoso com os povos visinhos, coisa ainda nem tão distante no tempo, que mesmo sendo águas passadas, ainda estão na memória do inconsciente.

Chegamos em Corumbá de noitezinha com pouquíssima gente no trem. Apanhamos as nossas mochilas para pernoitar na cidade, pois ali já era fronteira com a Bolívia e precisávamos de passagens para continuar a viagem do outro lado.

Como a estação ferroviária era um pouco retirada da cidade, procuramos um táxi que nos levasse até um hotel, mas não vimos nada, tudo deserto. Procurei a ajuda de um funcionário da estação, que nos apontou uma carroça dizendo que aquele era o táxi. Não acreditei, mas era verdade.

Dissemos ao carroceiro que queríamos passar a noite na cidade, pois estávamos de viagem para a Bolívia, e queríamos um hotel, apenas por aquela noite. Muito bem, andou com aquele cavalo por dois quarteirões e já estávamos no hotel. Pagamos uma bela corrida.

Era um hotel simples, mas confortável, e próximo da estação de trem, de forma que estava de mão para o dia seguinte, para continuar a viagem.

Estávamos na recepção do hotel , preenchendo a fixa, quando o gerente pediu que colocássemos horários diferentes na chegada ao hotel, coisa estranha, mas depois ele justificou dizendo que como éramos estudantes e barbudos, se colocássemos na fixa que chegamos no hotel juntos, no dia seguinte estaríamos presos, confundidos com querrilheiros.

Ficamos preocupados, aquele hotel era mesmo estranho, mas para uma noite servia. Havíamos combinado que logo pela manhã cairíamos fora, até que tivemos boa conversa com o gerente do hotel, que nos assegurou que se tentássemos tomar o trem para Santa Cruz, sem visto, seriamos presos no meio do caminho, já que policiais federais brasileiros e bolivianos viajavam no trem a procura de subversivos, qualificação muito comum naquele tempo, usada pelas autoridades para extorquir os cidadãos.

Informara ainda que a historia de se viajar só com a carteira de identidade, valia para bolivianos que vinham para o Brasil, mas não valia para brasileiros que iam para a Bolívia, tudo dependendo do governo que estava no poder.

Fomos até a Capitania dos Portos tentar uma autorização, que seria um tipo de Salvo Conduto, um tipo de quebra-galho, para que pelo menos pudéssemos chegar a Santa Cruz, sem sermos incomodados, ou se fossemos, teríamos algum documento para apresentar, tanto para uma policia, quanto para a outra.

Em vão, não conseguimos nada, talvez por causa da barba comprida, pois fomos muito mal atendidos pelos militares que ali estavam, já que era comum fornecerem essa autorização provisória, segundo os moradores do lugar. Essa vida de marinheiro de primeira viagem é triste. Para nós era o fim da linha.

Diante dos imprevistos, acabamos ficando naquele hotel estranho mesmo, já que fizéramos amizade com o Gerente, que descobrimos depois, era amante da dona do Hotel e amigão do marido dela, que também trabalhava lá pelo hotel, fazendo não lembro o que. Tiramos o dia para descansar e conhecer a cidade.

Corumbá é mesmo uma cidade muito quente, a temperatura às vezes beira e até passa os quarenta graus. Nos restaurantes e nos cafés, se servia primeiramente, pedisse ou não, água gelada em jarras enormes, que de tempos em tempos, eram trocadas por outras, já que perdiam o gelo muito de modo muito rápido.

Cerveja gelada saia do frízer, e tinha que ser bebida imediatamente, senão esquentava,

Apesar do calor, fumante que eu era, resolvi tomar um cafezinho antes do cigarro e entramos em uma dessas casas de café.

Achei que tinha errado a porta e entrado em alguma sorveteria. As paredes e o balcão eram de mármore ou granito, dando a impressão de estarmos em uma daquelas sorveterias antigas. Serviam nos balcões,as tais jarras de água gelada com copos igualmente enormes. Pedi o café, fumei meu cigarro e tomei a água gelada antes de ir embora e sair de novo naquele sol de matar.

O calor era tanto que para se tomar um cafezinho, primeiro tomava-se um copo de água gelada e só depois se tomava o café, alguns tomavam outro copo de água gelada depois do café.

No hotel, principalmente no restaurante, e durante o jantar, é que era possível observar a movimentação dos outros hospedes.Tão estranhos quanto o hotel,os hospedes estavam sempre cochichando às mesas, olhando de lado, sempre com ar desconfiado, principalmente na nossa presença. Acho que os estranhos nessa historia éramos eu e o Waldir.

No dia seguinte, fizemos um passeio de ônibus até Puerto Suarez, na Bolívia, para fazermos compras. Um

ônibus partia ali do centro de Corumbá, passava pela Aduaneira e parava em Puerto Suarez. Cidade pequena que mais parecia um vilarejo.

A Aduaneira, como era chamada, era provavelmente um posto do Exercito, já que pelo uniforme que usavam, pelas armas que carregavam e pela educação que tinham,não poderia ser outra coisa. Ameaçavam todo mundo, primeiro pedindo documentos de um e de outro, e os nossos evidentemente, alem de nos encheram de perguntas. Só não fomos presos, porque não por acaso, levamos nossas carteiras profissionais, que serviu para mostrar que não éramos apenas estudantes.

Nessa época estudante, comunista e guerrilheiro era tudo a mesma coisa, para o exercito naturalmente. Depois de checados os documentos e feito o interrogatório, ameaçavam prender quem comprasse produtos brasileiros, como camisetas, calças, sapatos e sei lá mais o que, já que no retorno o ônibus haveria uma revista geral.

Seguimos viagem por aquela estrada de terra , e dois quilômetros pra frente, passamos pela fiscalização Boliviana. Era um quiosque de sapé, com um único soldado, que sentado sobre uma cerca de mourões, acenava para nós dando um tchau. O motorista acelerou, e sumimos por entre as curvas da estrada barrenta, parando somente no nosso destino. Ainda era de manhã.

Era uma única rua , enlameada, que acabava em um rio, de forma que tínhamos que andar pelas calçadas, feitas de madeira, como nos filmes sobre o Velho Oeste. As lojas também eram de madeira e muito mal cuidadas, algumas nem pitadas eram. Nas vitrines, relógios Rolex, maquinas fotográficas e bebidas estrangeiras, faziam um contraste indescritível com o lugar.

Entramos em um bar e pedimos uma cerveja, afinal era preciso comemorar, não foi como queríamos, mas estávamos na Bolívia, e para caprichar pedimos uma cerveja boliviana; nem cachaça pura era tão ruim, e ainda estava sem gelo. Não deu para tomar.

Por fim compramos artesanato indígena e voltamos para o ônibus, pois era impossível andar pelas lojas, não pelo excesso de gente, mas pelo excesso de barro.

Voltamos para Corumbá, já á tarde, lá pelas quatro horas. O soldado Boliviano já tinha ido embora, a aduana no Brasil realmente revistou os passageiros, e liberou todo mundo e a viagem terminou sem sobressaltos.

Acho que por causa dos atropelos da viagem , os imprevistos, e o fato de estar longe da família, não havíamos percebido que os dias haviam se passado rapidamente e já era véspera de natal. Não podíamos seguir viagem sem os vistos e não havia tempo de retornar, para passar o natal em casa. Resolvemos passar o Natal no Hotel.

Como a essa altura, nos éramos os únicos hospedes no hotel, acabamos sendo convidados para a ceia de Natal, que seria promovida pela dona do hotel, cujo nome não lembro mais. Mas como nada na vida é de graça, havia uma condição a cumprir : teríamos que entregar a chave do quarto na recepção enquanto as meninas estivessem no hotel. Meninas?

Aconteceu um impasse. A ceia era uma coisa familiar e nada tinha a haver com os hospedes Hotel e como eles podiam colocar a gente para fora, resolveram nos convidar para ceia, desde que nos comportássemos, já que as meninas eram as filhas da dona do hotel.

Fiquei muito impressionado com aquela mulher, que me parecia uma bruxa mandona, pouco incomodada com o pobre marido, sempre chamando sua atenção, mesmo na presença dos hospedes, mal encarada e pouco ligando para as palavras. Tinha lá seus 48 anos, altura mediana, meio gorda, e com um andar que mais parecia uma pata indo para a lagoa. Quem acreditaria que essa megera, havia adotado crianças pobres, as quais cuidava com tanto zelo, que chamava de filhas, tendo pedido que mantivéssemos a porta do nosso quarto trancado, e com a chave entregue ao gerente. Quanto zelo.

É bom ter cuidado mesmo, afinal nesse mundo em que se vive, não podemos confiar em ninguém, ainda mais em se tratando de meninas.

Nós não sabíamos, mas já imaginávamos, e tudo foi confidenciado a nós mais tarde, por algum funcionário do hotel. É que aquela zelosa Senhora, também era dona de uma boate e que as meninas, a quem ela carinhosamente chamava de filhinhas, eram as garotas de programa, que também carinhosamente, chamavam a rufiona de mãezinha.

Certo é que pelas 22 horas, estávamos no restaurante do hotel de garfo e faca nas mãos, e rodeados pelas meninas. Chegaram em fila indiana, e todos nós sentamos, cada qual na sua posição, sempre seguindo as orientações e ordens do general de saias. Nem o marido, nem o gerente, tinham coragem sequer de levantar os olhos.

Havia no meio do restaurante, uma mesa enorme para vinte ou pessoas ou mais. Na ponta direita estava a Bruxa com um enorme porco assado à sua frente, daqueles com maçã na boca, depois tínhamos risoto, peru, macarrão, frutas e etc.

O champanha, de cidra, não podia faltar, alem do vinho tinto doce de garrafão e o refrigerante, tudo muito bem gelado, afinal aquele calor infernal também entrava pela noite e não dava trégua.

Para nossa sorte ou azar, ficamos no meio da mesa, rodeados pelas moçoilas, e muito bem vigiados, não dava nem para respirar. Estávamos incomodados com aquela situação, pois éramos o centro das atenções, os estranhos do lugar.

Toda noite, lá pelas 23 horas havia corte de energia, e naquela noite não foi diferente. Ao primeiro sinal de escuridão, a matrona completamente bêbada, de facão em punho, gritou que o primeiro Filho da Puta que saísse da mesa iria morrer. Deu ordem para que trouxessem as velas, que rapidamente foram acessas e colocados sobre a mesa.

Com a enorme faca de cortar o porco, ela ameaçava para que ninguém fosse para o corredor que dava acesso aos quartos, e aos palavrões dava ordens ao marido que obedecia resignadamente. Ninguém tinha coragem de contrariar suas ordens, nem o marido, nem o gerente amante, nem as meninas e nem nos, que não somos tatu.

Ficamos ali na mesa aterrorizados olhando para aquela figura bêbada, de facão em punho, iluminada pelas velas da mesa, imóvel feito uma estatua, olhando para nossa cara e babando. Tudo gente fina!

Demorou, mas a luz chegou e alguem logo colocou um disco para tocar e o baile começou, claro, com a autorização necessária. Foi mesmo um alivio e logo fui para fora, e fiquei lá na calçada do hotel tomando uma fresca, já que eu estava molhado de suor, não sei se pelo calor que fazia, ou pelo facão. O Waldir chegou logo depois de mim, pois não agüentava mais ficar ouvindo Odair José, Valdique Soriano e outros, sem falar nas guaranias.

Ali mesmo na calçada combinamos de voltar para casa logo pela manhã. Estávamos preocupados, com aquela situação, longe de casa, num hotel suspeito, com uma dona suspeita, com um gerente estranho, sem falar nas figuras que apareciam lá pelo hotel, que chegavam cochichavam e iam embora, e que também não nos faltou oferta de droga, que por lá, era coisa normal.

Se não conseguíssemos um trem para São Paulo, pegaríamos um ônibus cuja viagem era mais rápida, mas de qualquer forma iríamos embora, ou em ultimo caso mudaríamos de hotel. Fomos dormir e não vimos as meninas irem embora.

Pela manhã, bem cedo, pedimos para fechar a nossa conta. Agradecemos a hospitalidade e a ceia da noite passada, e nos mandamos o mais rápido possível para a estação de trem, que para nossa surpresa tinha o trem que queríamos e já estava de saída. A sorte voltou!

A volta foi muito diferente, pois pouca gente estava viajando, como é de se esperar para o dia de Natal. As pessoas sempre viajam antes ou depois, mas no dia de Natal, só os perdidos como nós.

O trem seguia pachorrento seu caminho, parava nas estações, mas era pouco o movimento de passageiros. Estávamos ansiosos paras chegar em casa, e a pouca velocidade do trem que foi uma benção na ida, se tornara um inferno na volta.

Só chegamos a Campo Grande á noite e não agüentávamos mais viajar de trem, pelo menos faríamos uma baldeação e tocaríamos o trem, já era alguma coisa.

Seria mais um dia inteiro de viagem, e esse pensamento tortuoso deu uma idéia ao Waldir. A estação rodoviária era ali próxima, já sabíamos, e a baldeação levaria ainda 10 minutos.

De mochila nas costas corremos para a estação rodoviária, para ver se tinha ônibus naquele momento para Sampa, caso contrario voltaríamos a tempo de pegar o trem na baldeação.

Era noite e erramos o caminho para a rodoviária perdendo um tempo danado. Provavelmente o trem já tinha partido e começou a bater o desespero. Por fim estávamos bem de frente à estação rodoviária, e a sorte ainda bafejava para nós. Conseguimos passagens para o ônibus, que alias estava de saída, de modo que não perdemos tempo nenhum, e ganharíamos 12 horas de viagem. Dito e feito.

Lar doce lar, passei 3 dias sem sair de casa, nem na esquina eu fui.

Saiu da estação da Luz em São Paulo às 9 horas pontualmente. Se me lembro era um trem razoavelmente confortável e muito imponente, espaçoso de dar gosto.

Tomei meu lugar, ao meu lado o meu amigo Waldir, companheiro de todas as horas nessa viagem.

Trabalhávamos na mesma empresa e quando descobrimos que poderíamos tirar férias na mesma data, arranjamos logo algo para fazer: viajar pela América do Sul de trem, o que seria uma bela aventura, alem de custar relativamente pouco, como convinha. Era o pé na estrada, no caso, pé na estrada de ferro.

Isso era mesmo coisa de jovem, passeio da moda, pois no trem encontramos outros grupos que já vinham viajando desde o nordeste, todos estudantes também, acompanhados das namoradas, do violão, papagaio e muita cantoria.

Estávamos ansiosos, esperando a partida do trem, que ainda faltavam alguns minutos e dávamos assas a imaginação especulando como seria a viagem, até onde seria possível chegar sem visto. Era meio que lenda, a historia de um acordo entre os paises da América do Sul que permitia viajar, por esses paises, só com a carteira de identidade. A política nessa região sempre foi bastante conturbada e era um golpe político atrás do outro, que dependendo do governo da época, da guerrilha e do trafico de drogas, podia-se ou não viajar só com a carteira de identidade. Mas isso nós acabaríamos descobrindo na hora de entrar na Bolívia, cuja fronteira era relativamente vigiada, nem tanto devido ao trafico de drogas e mais pelo movimento da guerrilha, já que no Brasil estávamos em plena ditadura militar e os nossos generais queriam ver esse negocio de guerrilha bem longe, afinal dava muito trabalho.

As poltronas eram numeradas, de forma que foi fácil se acomodar já que de bagagem levávamos apenas uma mochila cada um. Os passageiros todos nos seus lugares, uma ou outra criança agitando, mas nada que incomodasse, a viagem seria mesmo uma maravilha. Mal sabíamos o que nos esperava.

De fato a viagem era muito confortável , bem diferente das viagens urbanas nos trens da Santos Jundiaí, que fazíamos às vezes entre as cidades da Grande São Paulo, trens lotados, bêbados vendedor de amendoim, pastor pregando, e os batedores de carteira que nunca eram presos.

Viajamos por horas, talvez sete ou oito, até chegarmos a cidade de Bauru, onde tivemos a primeira surpresa da viagem. Uma baldeação, aquilo que nos aeroportos chamamos de conexão, que deveria ser uma coisa tranqüila e sem maiores correrias.

Quando o trem parou na estação de Bauru, todo mundo saiu correndo do trem, como se alguem gritasse bomba, bomba, e rapidamente ocupavam a outra composição de trens, que estava em frente na outra borda da plataforma.

Eu e o meu companheiro, o Waldir, calmamente apanhamos nossas mochilas e nos dirigimos para a outra composição à procura dos nossos lugares, quando descobrimos que a numeração das poltronas já era, não valia mais, quem sentou, sentou, quem não sentou não senta mais.

Nessa fase da viagem o trem já estava mais vazio, mas nem tanto, e nos acomodamos onde foi possível, já que fomos os últimos a chegar, achando que nossos lugares estavam garantidos.

Andamos por todos os vagões, procurando um lugar que nos agradasse e notamos que somente os primeiros lugares, do lado esquerdo, a contar do inicio do vagão, estavam invariavelmente desocupados.

Marinheiros de primeira viagem que éramos, mas desconfiados de tudo, e sem alternativas, ficamos em um desses lugares logo nos primeiros bancos, que alias davam mais espaço para as pernas.

O trem partiu. No primeiro tranco da partida, a porta da cabine que ficava bem a nossa frente se abriu, e descobrimos porque ninguém queria ficar naqueles lugares, e lembrei do velho ditado; laranja madura na beira da estrada, ta bichada Zé, ou tem marimbondo no pé.

A tal cabine era tão somente o banheiro, que pelo cheiro, não era limpo há semanas, motivo também da correria na baldeação: todo mundo sabia do cheiro; menos nós.

As fechaduras dos banheiros de todos os vagões estavam quebradas, de forma que as portas ficavam abrindo e fechando, conforme o movimento do trem. Não tinha como isolar aquele cheiro fechando a porta, e ainda não tinha como evitar o “beng- beng” do bater da porta, com o balanço do trem.

Alem do cheiro e das pancadas da porta, a viagem correu sem novidades, a não ser o fato de que, a cada parada nas Estações, mais gente entrava e entupia o trem. Era de madrugada, e tinha gente de pé nos corredores de tão lotada que ficou a composição.

No fim de cada vagão tinha uma espécie de varanda, local muito usado pelos fumantes pois era proibido fumar no trem, e toda hora passava um funcionário de uniforme azul para fiscalizar, ou os fumantes, ou as passagens, ou anotar algum pedido para o restaurante, ou ainda entregar o marmitex, já que o carro restaurante, não se sabe porque, não funcionava. Com o trem lotado, o povo comia em pé mesmo. Era um prato de arroz com feijão, farofa e frango, que quando caia no chão, sujava tudo de gordura e complicava ainda mais a limpeza daquele velho trem, desconfortável e sujo.

Era dezembro e o calor estava insuportável. Durante o dia a paisagem distraia, mas durante a noite com o trem cheio, a distração era olhar para a cara dos outros ou fingir que estava dormindo, já que dormir mesmo não dava.

Eram pessoas muito sofridas, tristes e com um comportamento às vezes estranho ou diferente do esperado, eram pessoas que não vemos no dia a dia, não por elas não existirem, mas por estarem escondidas na multidão. Nessas ocasiões é que percebemos a diversidade do povo brasileiro, povo moreno em sua maioria, com poucos brancos ou negros. Essa imagem da nossa gente, só se conhece viajando pelo interior do Brasil, um povo moreno como os Hindus, que não aparece na televisão, e portanto é como se não existisse, mas esse é o verdadeiro povo brasileiro. Só quem viajou pelo interior do Brasil, pode dizer que conhece seu povo, quem não viajou nem imagina. Quem não é moreno, seja da etnia que for, um dia será, claro que falamos da descendência. Um dia, seremos todos mestiços, da cor dos hindus.

Era noite, um calor infernal, e a maioria das janelas ficavam fechadas, ou por vontade do passageiro que não queria tomar vento, ou por defeito mesmo, por falta de manutenção, já que as estradas de ferro estavam se acabando, conforme a política vigente até os dias de hoje, para facilitar a vida da industria automobilística.

Mas, retornando a viagem, o calor é infernal naquela região e o que salvava era o vento do trem em movimento, mas quando o trem parava nas estações o vento sumia. Era mais gente que entrava e ninguém saia, parecia horário de pico em São Paulo, só que no meio do mato. O leitor pode estar achando que eu exagero na narrativa, mas é isso mesmo. No meio de mato a caminho de Campo Grande , duas horas da manhã, o trem lotado e um escuro de dar dó, parado no meio do nada, esperando o outro trem que vinha em sentido contrario, já que o trilho, só tem para uma via. Nós suávamos de bica.

Eu não agüentava mais aquele calor, alem do mais precisava mexer as pernas, pois já havia horas que eu estava sentado naquela poltrona desconfortável. Fui ate o fundo do trem, na tal da varanda, tomar um ar, apesar de correr o risco de perder o lugar, que o Waldir guardava. Nessas horas era preciso virar um Dobermann para convencer aos mais insistentes, que o lugar estava ocupado.

O trem continuava parado na mais completa escuridão a não ser por uma ou outra pequena luz, talvez de emergência que ficava acesa, mas não iluminava nada, apenas sinalizava sua posição. Fiquei ali na varanda fumando e me refrescando com o ar fresco, ouvindo o barulho da bicharada no mato e apreciando o céu estrelado, que pela escuridão da mata ficava mais estrelado ainda.

Havia no céu uma estrela maior que as outras, e que parecia se mexer de tão brilhante que era. Julguei ser Vênus, muitas vezes confundida com óvni, de tão grande que ela aparece no céu. Planeta ou estrela era só um detalhe diante de tanta beleza, dei a ultima tragada naquele cigarro , pensando nos bichos barulhentos da noite, quando as luzes luz se acenderam. Sinal que o trem ia partir, quando olhei novamente para o céu, Vênus havia desaparecido. Entrei rapidinho.

Meu lugar ainda estava lá, mas o povo já andava de olho, o Waldir respirou aliviado quando cheguei, e daí ele foi também tomar um ar. Não falei nada de que Vênus havia desaparecido; afinal ele iria dizer que foi o cigarro, e não foi. O cigarro era cigarro mesmo!

Foi pela manhã, lá pelas oito horas que chegamos a estação de Campo Grande, que como as demais estações, era velha e mal cuidada, só que essa era um pouquinho mais feia. Fizemos nova baldeação.

Como já não éramos mais marinheiros de primeira viagem, ficamos espertos e fizemos a baldeação na velocidade de uma bala. Nem era preciso, pois o trem estava praticamente vazio, com meia dúzia de gatos pingados.

Os banheiros cheiravam igual ou pior que a composição anterior, e esse trem era na verdade bem pior. Os bancos eram bancos de fato, de madeira ripada, daqueles que o encosto vira de frete para trás e de trás para frente, composição bem antiga do tempo dantão.

Logo depois da saída de Campo Grande, vimos um Tamanduá Bandeira enorme, correndo solitário pelo campo. Foi uma visão inesperada, e inesquecível dada à beleza do animal vivendo em liberdade.

Já estávamos chegando a uma das regiões mais bela do planeta, o Pantanal, e a viagem começava a valer.

O trem quase vazio, ia parando pelas pequenas estações de forma que podíamos com tranqüilidade apreciar o povo local, povo de fronteira, um pouco rude e com costumes estranhos para nos. Lembro de uma dessas paradas, que da janela vi uma cena que por muitos anos ficou na minha lembrança. Foi quando um homem de aspecto rude, e que estava na plataforma para tomar o trem , se despedia do amigo , dizendo que ia até a cidade mais próxima, buscar remédio para sua mulher que estava doente, e puxando um punhal da cintura, entregou ao amigo pedindo a este que cuidasse da sua família ate sua volta. O amigo pegou a arma, e com certo ar solene disse: vá tranqüilo que eu não dormirei enquanto você não voltar.

Essa imagem ficou por muito tempo na minha lembrança, marcada pela rudeza desse povo das fronteiras, talvez lembranças de um passado belicoso com os povos visinhos, coisa ainda nem tão distante no tempo, que mesmo sendo águas passadas, ainda estão na memória do inconsciente.

Chegamos em Corumbá de noitezinha com pouquíssima gente no trem. Apanhamos as nossas mochilas para pernoitar na cidade, pois ali já era fronteira com a Bolívia e precisávamos de passagens para continuar a viagem do outro lado.

Como a estação ferroviária era um pouco retirada da cidade, procuramos um táxi que nos levasse até um hotel, mas não vimos nada, tudo deserto. Procurei a ajuda de um funcionário da estação, que nos apontou uma carroça dizendo que aquele era o táxi. Não acreditei, mas era verdade.

Dissemos ao carroceiro que queríamos passar a noite na cidade, pois estávamos de viagem para a Bolívia, e queríamos um hotel, apenas por aquela noite. Muito bem, andou com aquele cavalo por dois quarteirões e já estávamos no hotel. Pagamos uma bela corrida.

Era um hotel simples, mas confortável, e próximo da estação de trem, de forma que estava de mão para o dia seguinte, para continuar a viagem.

Estávamos na recepção do hotel , preenchendo a fixa, quando o gerente pediu que colocássemos horários diferentes na chegada ao hotel, coisa estranha, mas depois ele justificou dizendo que como éramos estudantes e barbudos, se colocássemos na fixa que chegamos no hotel juntos, no dia seguinte estaríamos presos, confundidos com querrilheiros.

Ficamos preocupados, aquele hotel era mesmo estranho, mas para uma noite servia. Havíamos combinado que logo pela manhã cairíamos fora, até que tivemos boa conversa com o gerente do hotel, que nos assegurou que se tentássemos tomar o trem para Santa Cruz, sem visto, seriamos presos no meio do caminho, já que policiais federais brasileiros e bolivianos viajavam no trem a procura de subversivos, qualificação muito comum naquele tempo, usada pelas autoridades para extorquir os cidadãos.

Informara ainda que a historia de se viajar só com a carteira de identidade, valia para bolivianos que vinham para o Brasil, mas não valia para brasileiros que iam para a Bolívia, tudo dependendo do governo que estava no poder.

Fomos até a Capitania dos Portos tentar uma autorização, que seria um tipo de Salvo Conduto, um tipo de quebra-galho, para que pelo menos pudéssemos chegar a Santa Cruz, sem sermos incomodados, ou se fossemos, teríamos algum documento para apresentar, tanto para uma policia, quanto para a outra.

Em vão, não conseguimos nada, talvez por causa da barba comprida, pois fomos muito mal atendidos pelos militares que ali estavam, já que era comum fornecerem essa autorização provisória, segundo os moradores do lugar. Essa vida de marinheiro de primeira viagem é triste. Para nós era o fim da linha.

Diante dos imprevistos, acabamos ficando naquele hotel estranho mesmo, já que fizéramos amizade com o Gerente, que descobrimos depois, era amante da dona do Hotel e amigão do marido dela, que também trabalhava lá pelo hotel, fazendo não lembro o que. Tiramos o dia para descansar e conhecer a cidade.

Corumbá é mesmo uma cidade muito quente, a temperatura às vezes beira e até passa os quarenta graus. Nos restaurantes e nos cafés, se servia primeiramente, pedisse ou não, água gelada em jarras enormes, que de tempos em tempos, eram trocadas por outras, já que perdiam o gelo muito de modo muito rápido.

Cerveja gelada saia do frízer, e tinha que ser bebida imediatamente, senão esquentava,

Apesar do calor, fumante que eu era, resolvi tomar um cafezinho antes do cigarro e entramos em uma dessas casas de café.

Achei que tinha errado a porta e entrado em alguma sorveteria. As paredes e o balcão eram de mármore ou granito, dando a impressão de estarmos em uma daquelas sorveterias antigas. Serviam nos balcões,as tais jarras de água gelada com copos igualmente enormes. Pedi o café, fumei meu cigarro e tomei a água gelada antes de ir embora e sair de novo naquele sol de matar.

O calor era tanto que para se tomar um cafezinho, primeiro tomava-se um copo de água gelada e só depois se tomava o café, alguns tomavam outro copo de água gelada depois do café.

No hotel, principalmente no restaurante, e durante o jantar, é que era possível observar a movimentação dos outros hospedes.Tão estranhos quanto o hotel,os hospedes estavam sempre cochichando às mesas, olhando de lado, sempre com ar desconfiado, principalmente na nossa presença. Acho que os estranhos nessa historia éramos eu e o Waldir.

No dia seguinte, fizemos um passeio de ônibus até Puerto Suarez, na Bolívia, para fazermos compras. Um

ônibus partia ali do centro de Corumbá, passava pela Aduaneira e parava em Puerto Suarez. Cidade pequena que mais parecia um vilarejo.

A Aduaneira, como era chamada, era provavelmente um posto do Exercito, já que pelo uniforme que usavam, pelas armas que carregavam e pela educação que tinham,não poderia ser outra coisa. Ameaçavam todo mundo, primeiro pedindo documentos de um e de outro, e os nossos evidentemente, alem de nos encheram de perguntas. Só não fomos presos, porque não por acaso, levamos nossas carteiras profissionais, que serviu para mostrar que não éramos apenas estudantes.

Nessa época estudante, comunista e guerrilheiro era tudo a mesma coisa, para o exercito naturalmente. Depois de checados os documentos e feito o interrogatório, ameaçavam prender quem comprasse produtos brasileiros, como camisetas, calças, sapatos e sei lá mais o que, já que no retorno o ônibus haveria uma revista geral.

Seguimos viagem por aquela estrada de terra , e dois quilômetros pra frente, passamos pela fiscalização Boliviana. Era um quiosque de sapé, com um único soldado, que sentado sobre uma cerca de mourões, acenava para nós dando um tchau. O motorista acelerou, e sumimos por entre as curvas da estrada barrenta, parando somente no nosso destino. Ainda era de manhã.

Era uma única rua , enlameada, que acabava em um rio, de forma que tínhamos que andar pelas calçadas, feitas de madeira, como nos filmes sobre o Velho Oeste. As lojas também eram de madeira e muito mal cuidadas, algumas nem pitadas eram. Nas vitrines, relógios Rolex, maquinas fotográficas e bebidas estrangeiras, faziam um contraste indescritível com o lugar.

Entramos em um bar e pedimos uma cerveja, afinal era preciso comemorar, não foi como queríamos, mas estávamos na Bolívia, e para caprichar pedimos uma cerveja boliviana; nem cachaça pura era tão ruim, e ainda estava sem gelo. Não deu para tomar.

Por fim compramos artesanato indígena e voltamos para o ônibus, pois era impossível andar pelas lojas, não pelo excesso de gente, mas pelo excesso de barro.

Voltamos para Corumbá, já á tarde, lá pelas quatro horas. O soldado Boliviano já tinha ido embora, a aduana no Brasil realmente revistou os passageiros, e liberou todo mundo e a viagem terminou sem sobressaltos.

Acho que por causa dos atropelos da viagem , os imprevistos, e o fato de estar longe da família, não havíamos percebido que os dias haviam se passado rapidamente e já era véspera de natal. Não podíamos seguir viagem sem os vistos e não havia tempo de retornar, para passar o natal em casa. Resolvemos passar o Natal no Hotel.

Como a essa altura, nos éramos os únicos hospedes no hotel, acabamos sendo convidados para a ceia de Natal, que seria promovida pela dona do hotel, cujo nome não lembro mais. Mas como nada na vida é de graça, havia uma condição a cumprir : teríamos que entregar a chave do quarto na recepção enquanto as meninas estivessem no hotel. Meninas?

Aconteceu um impasse. A ceia era uma coisa familiar e nada tinha a haver com os hospedes Hotel e como eles podiam colocar a gente para fora, resolveram nos convidar para ceia, desde que nos comportássemos, já que as meninas eram as filhas da dona do hotel.

Fiquei muito impressionado com aquela mulher, que me parecia uma bruxa mandona, pouco incomodada com o pobre marido, sempre chamando sua atenção, mesmo na presença dos hospedes, mal encarada e pouco ligando para as palavras. Tinha lá seus 48 anos, altura mediana, meio gorda, e com um andar que mais parecia uma pata indo para a lagoa. Quem acreditaria que essa megera, havia adotado crianças pobres, as quais cuidava com tanto zelo, que chamava de filhas, tendo pedido que mantivéssemos a porta do nosso quarto trancado, e com a chave entregue ao gerente. Quanto zelo.

É bom ter cuidado mesmo, afinal nesse mundo em que se vive, não podemos confiar em ninguém, ainda mais em se tratando de meninas.

Nós não sabíamos, mas já imaginávamos, e tudo foi confidenciado a nós mais tarde, por algum funcionário do hotel. É que aquela zelosa Senhora, também era dona de uma boate e que as meninas, a quem ela carinhosamente chamava de filhinhas, eram as garotas de programa, que também carinhosamente, chamavam a rufiona de mãezinha.

Certo é que pelas 22 horas, estávamos no restaurante do hotel de garfo e faca nas mãos, e rodeados pelas meninas. Chegaram em fila indiana, e todos nós sentamos, cada qual na sua posição, sempre seguindo as orientações e ordens do general de saias. Nem o marido, nem o gerente, tinham coragem sequer de levantar os olhos.

Havia no meio do restaurante, uma mesa enorme para vinte ou pessoas ou mais. Na ponta direita estava a Bruxa com um enorme porco assado à sua frente, daqueles com maçã na boca, depois tínhamos risoto, peru, macarrão, frutas e etc.

O champanha, de cidra, não podia faltar, alem do vinho tinto doce de garrafão e o refrigerante, tudo muito bem gelado, afinal aquele calor infernal também entrava pela noite e não dava trégua.

Para nossa sorte ou azar, ficamos no meio da mesa, rodeados pelas moçoilas, e muito bem vigiados, não dava nem para respirar. Estávamos incomodados com aquela situação, pois éramos o centro das atenções, os estranhos do lugar.

Toda noite, lá pelas 23 horas havia corte de energia, e naquela noite não foi diferente. Ao primeiro sinal de escuridão, a matrona completamente bêbada, de facão em punho, gritou que o primeiro Filho da Puta que saísse da mesa iria morrer. Deu ordem para que trouxessem as velas, que rapidamente foram acessas e colocados sobre a mesa.

Com a enorme faca de cortar o porco, ela ameaçava para que ninguém fosse para o corredor que dava acesso aos quartos, e aos palavrões dava ordens ao marido que obedecia resignadamente. Ninguém tinha coragem de contrariar suas ordens, nem o marido, nem o gerente amante, nem as meninas e nem nos, que não somos tatu.

Ficamos ali na mesa aterrorizados olhando para aquela figura bêbada, de facão em punho, iluminada pelas velas da mesa, imóvel feito uma estatua, olhando para nossa cara e babando. Tudo gente fina!

Demorou, mas a luz chegou e alguem logo colocou um disco para tocar e o baile começou, claro, com a autorização necessária. Foi mesmo um alivio e logo fui para fora, e fiquei lá na calçada do hotel tomando uma fresca, já que eu estava molhado de suor, não sei se pelo calor que fazia, ou pelo facão. O Waldir chegou logo depois de mim, pois não agüentava mais ficar ouvindo Odair José, Valdique Soriano e outros, sem falar nas guaranias.

Ali mesmo na calçada combinamos de voltar para casa logo pela manhã. Estávamos preocupados, com aquela situação, longe de casa, num hotel suspeito, com uma dona suspeita, com um gerente estranho, sem falar nas figuras que apareciam lá pelo hotel, que chegavam cochichavam e iam embora, e que também não nos faltou oferta de droga, que por lá, era coisa normal.

Se não conseguíssemos um trem para São Paulo, pegaríamos um ônibus cuja viagem era mais rápida, mas de qualquer forma iríamos embora, ou em ultimo caso mudaríamos de hotel. Fomos dormir e não vimos as meninas irem embora.

Pela manhã, bem cedo, pedimos para fechar a nossa conta. Agradecemos a hospitalidade e a ceia da noite passada, e nos mandamos o mais rápido possível para a estação de trem, que para nossa surpresa tinha o trem que queríamos e já estava de saída. A sorte voltou!

A volta foi muito diferente, pois pouca gente estava viajando, como é de se esperar para o dia de Natal. As pessoas sempre viajam antes ou depois, mas no dia de Natal, só os perdidos como nós.

O trem seguia pachorrento seu caminho, parava nas estações, mas era pouco o movimento de passageiros. Estávamos ansiosos paras chegar em casa, e a pouca velocidade do trem que foi uma benção na ida, se tornara um inferno na volta.

Só chegamos a Campo Grande á noite e não agüentávamos mais viajar de trem, pelo menos faríamos uma baldeação e tocaríamos o trem, já era alguma coisa.

Seria mais um dia inteiro de viagem, e esse pensamento tortuoso deu uma idéia ao Waldir. A estação rodoviária era ali próxima, já sabíamos, e a baldeação levaria ainda 10 minutos.

De mochila nas costas corremos para a estação rodoviária, para ver se tinha ônibus naquele momento para Sampa, caso contrario voltaríamos a tempo de pegar o trem na baldeação.

Era noite e erramos o caminho para a rodoviária perdendo um tempo danado. Provavelmente o trem já tinha partido e começou a bater o desespero. Por fim estávamos bem de frente à estação rodoviária, e a sorte ainda bafejava para nós. Conseguimos passagens para o ônibus, que alias estava de saída, de modo que não perdemos tempo nenhum, e ganharíamos 12 horas de viagem. Dito e feito.

Lar doce lar, passei 3 dias sem sair de casa, nem na esquina eu fui.

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Formado em Administração, pescador de pesqueiro, palmeirense de quatro costados. Adoro os anos 70: tenho uma Caloi 10( são três na verdade), um fuca bala além de uma maquina fotografica Pentax Assay 35mm, só para curtir essa década maravilhosa. Cultivo uma pequena horta de temperos no quintal. Temos Manjericão do comum e do roxo, Alecrim, Hortelã, Salsinha, Cebolinha, orégano, Pimenta dedo de moça, malagueta e de cheiro. Gosto de estar com a familia, churrasquear e cozinhar, pedalar e bater papo com os amigos. Caminhar na praia é atividade obrigatória de todos os dias, quando o tempo ajuda.